O desenvolvimento perfeito

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A imagem foca um plano de fundo em tons de branco sujo, e em primeiro plano dois homens, cada um sentado numa cadeira em lados opostos de uma mesa de café redonda, de madeira clara. Em cima da mesa um copo de água meio cheio e um outro objecto, com o formato de uma lata, envolto num saco de papel castanho.

Próximo do copo meio cheio um indivíduo com as suas particularidades, de aparência jovem e corpo enfezado. Vestindo uma camisa preta que lhe ficava justa, e um par de calças de ganga iguais a tantas outras o seu ar jovial transparecia além das feições. Os sapatos negros em nada alteravam esse facto. Era Diogo Pinto, entrevistador da ACI, que passava, naturalmente, os dedos pelo seu cabelo, como se isso fizesse realmente alguma diferença, não estivesse este cortado a pente 2, talvez 3.

Do lado oposto, um homem com a cara mais gasta, preenchida por uma longa barba castanha que cresceu livremente, sem qualquer retoque. O seu cabelo era longo, chegava-lhe aos ombros, e tinha um aspecto oleoso e deslavado. Também usava uma camisa preta, mas mais solta, ficando-lhe larga. Os dois primeiros botões estavam desapertado, evidenciando os seus peitorais, não muito grandes, mas definidos. As mangas curtas despertavam a atenção para as tatuagens enormes que tinha ao longo dos braços, uma das quais uma serpente, tão real que parecia prestes a atirar-se a quem fosse, impiedosamente cravando os seus dentes compridos e cortantes. Tinha a perna direita apoiada sobre a esquerda, exibindo como se nada fosse os seus calções sujos e rasgados - rasgados não pela moda, mas pelo uso. Mexia descontraidamente essa mesma perna, dando a impressão que a havaina que tinha agarrada aos dedos dos pés estaria prestes a saltar. Era, claro está, Nick Lawrence, e-wrestler recém-contratado pela ACI.

Sem aviso, o entrevistador dá um pequeno golo da sua água e aclara a garganta, antes de voltar a pousar o copo.

Diogo Pinto (num tom seguro, fixando o olhar na câmara): Boa tarde a todos vós, portugueses acompanhantes desta grande modalidade que é o e-Wrestling. Tenho o prazer de me apresentar, sou Diogo Pinto, entrevistador da Arena de Combate Independente, a vossa mais recente federação de e-Wrestling nacional, e tenho aqui, ao meu lado, Nick “The Big Right” Lawrence, e-wrestler profissional pertencente ao nosso plantel.

Diogo Pinto desvia por um instante um olhar para Lawrence, que assente.

DP (prosseguindo no mesmo tom que antes, fixando agora o olhar no e-wrestler): Nick, é com muito gosto que te recebo aqui, tu que és, talvez, um dos casos mais paradigmáticos do e-Wrestling nacional, depois de uma passagem tão curta, mas com tanto impacto e repleta de polémica. E eu pergunto-me, como de certo quem estará em casa haverá de se estar a perguntar, se não tens nada a dizer sobre essa tua primeira passagem por cá?

Nick tira a perna direita de cima da esquerda, sentando-se numa posição mais séria.

Nick Lawrence: Eu sei muito bem o que tu e a outra gente lá de casa está à espera, ou melhor, o que vocês querem. Gostariam de ouvir da minha boca um discurso arrependido que culminasse num pedido de desculpa por aquilo que eu fiz na minha passagem pela E-Fed. Pois, não o esperem porque não será isso que terão aqui. O que fiz antes voltaria a fazer agora, sou o mesmo homem que passou por cá há quase um ano atrás, não mudei um pouco desde aí. E não sei se o consegues ouvir no meu tom, mas estou orgulhoso disso mesmo.
Os traços da face de Diogo Pinto endureceram, e o entrevistador morde o lábio num sinal de nervosismo.

NL: E digo-te, aquilo que eu fiz ao George Nature – e chocou tanta gente – soube-me sinceramente bem. Vê-lo estendido no chão, de olhos vidrados, impotente...ia-me caindo uma lágrima, sim, mas de felicidade. É que, compreendes, na altura o George Nature representava alguma das coisas que mais odiava, e odeio. Relembro a forma como ele caiu em cima de mim, com unhas e dentes, por causa duma puta duma lata de cerveja. Uma puta duma lata de cerveja? Lembras-te dessa merda? Lembram-se?! – Olha para a câmara, com os olhos esbugalhados – Tudo porque um puto encontrou o meu perfil e me viu a beber uma lata de cerveja. Mau exemplo, chamaram-me isso e voltaram a chamar. Mau exemplo, um filho da puta terrível que eu era, uma influência de merda num puto, que coitado, inocenten, nunca tinha visto ninguém a dar um trago numa lata de cerveja.

Lawrence agarra na lata embrulhada, dá um golo, sem mostrar o conteúdo, e solta um longo suspiro de contentamento.

DP (num tom grave): E que coisas eram essas , Nick, que o faziam odiar George Nature?

NL (com uma voz cheia de incredulidade e gozo): O que me fazia odiar o Nature?!

Nick recosta-se na cadeira soltando umas gargalhadas sinceras. Depois do riso, recompõe-se.

NL: É mais o que é que eu não odiava no homem. O gajo era um mimado, um miúdo endinheirado, que sempre tinha tido o que queria. Não fazia ideia do que era estar do outro lado, e só esse simples facto irritava-me. Eu lembro-me de quando era puto partir as janelas dos velhotes com vivendas grandes, que andavam para aí emproados. E por isso era um miúdo agressivo e rebelde. Mas de quem era a culpa mesmo? Quem fazia o verdadeiro mal? Eu que mandava umas pedradas numas janelas ou os velhotes, que com as suas manias me olhavam de lado na rua com nojo e desprezo, por andar com ténis rotos e com roupa suja. Por ser quem era, um puto com a vida toda fodida. Para mim, o que eu fazia na altura era justiça. E o que fiz do Nature também o foi. Umas janelas partidas, um pouco de sofrimento, de medo, faz bem, para relembrar que nem tudo no Mundo é de bom, e que do outro lado há quem tenha que aguentar com o sofrimento não tendo em que se agarrar.

Diogo Pinto esboça uma tentativa de falar, mas Lawrence levanta a palma da mão, impedindo-o.

NL: Mais, ele era um egomaníaco. O que por si só não tem nada de mal, porque também o sou. Mas ele era um egomaníaco disfarçado e falso. Fingia-se de bom, quando na realidade era tão podre por dentro como eu. Vangloriava-se, a si e aos seus feitos, numa atitude de prepotência, pa recolher gritos, aplausos, e vénias que lhe inflamavam o seu ego de miúdo carente. Dizia ser muito bom, com discursos que convenciam só os mais cegos e idiotas, que lhes davam depois a devida reverência pela tal bondade que era ilusória. A bondade que ele exibia nas suas palavras não tinham correspondência nas suas atitudes, era um abusador de poder. Bem me recordo que enquanto me punia pela história da cerveja protegia o seu amiguinho, Félix, um toxicodependente, escondendo o seu caso. Nojo, Diogo, nojo.

DP: Contudo, teve a coragem de o enfrentar no Summerwave.

NL (Com o mesmo tom incrédulo de antes): Coragem de me enfrentar?! – Tapa a cara com as mãos, contendo e escondendo o riso – Ele ao enfrentar-me não teve um acto de coragem, mas sim de arrogância, e o que quis foi encher ainda mais o seu ego. Se o que ele queria era que eu sofresse as consequências no ringue tivesse-me marcado um combate com os seus lutadores, porque não aquele japonês que o tipo adorava tanto...

DP(Interrompendo o discurso de Lawrence): O Ichiro Kentaro II.

NL: Esse gajo, o grande campeão de que o Nature se orgulhava tanto. Bem, Diogo, eu digo-te o porquê. É porque o grande presidente da altura queria inflamar ainda mais o seu ego. É a história perfeita, o presidente bondoso, salvador da modalidade, que voltava da reforma para pôr em sentido o grande vilão imoral que destruía a federação. Como se não houvesse outra solução, como se ele não tivesse podido simplesmente rescindir contrato comigo. E pior, num caso que era “urgente” ainda teve a brilhante ideia de marcar o combate para o grande evento que era o Summerwave. Sim, porque o magnâmico George Nature tinha que vencer o desprezado vilão num grande palco, e não num qualquer outro dia qualquer.

Nick exibe para a câmara um sorriso malicioso, mostrando os seus dentes amarelados.

NL: Mas fodeu-se. O plano saiu-lhe furado e acabou estendido no seu próprio ringue. Humilhado naquele que havia de ser o seu dia de triunfo. Foda-se, tão bem que me soube. Foi para aí um mês que estive na E-Fed antes do antro cair outra vez, e não podia ter sido melhor. Melhor do que qualquer título, é mandar um filho da puta daqueles para o fundo do poço. O gajo subestimou-me, como tantos idiotas fazem, e tramou-se. Posso não ser um primor técnico, mas sei dar porrada em alguém, sei magoar, provocar dor. O Nature foi como outros, subestimou-me por não ser capaz de fazer um Suplex todo bonitinho e acabou com os cornos no chão com um simples soco.

DP: Mas agora, com esta nova oportunidade que lhe foi concedida em território nacional pelo nosso presidente, Hugo Cochofel, não considera em mudar um pouco que seja a sua atitude?

NL: Mudar a minha atitude? Foda-se, eu sou o que sou, e a natureza das coisas não se muda. Um gato não ladra, um cão não mia, é simples. Eu sou um pitbull treinado para atacar, sê-lo-ei até ao fim. Agora uma coisa te garanto, a ti e a quem me ouve, se não me puserem em merdas que me afectem particularmente posso passar despercebido. O caso da E-Fed foi completamente aparte. Fora isso, sou um gajo que gosta de ir para o ringue partir umas cabeças, o que já por si não é de fazer muitos amigos.

Lawrence dá mais um golo na sua lata camuflada.

NL: E é o seguinte, já estou a par do cartaz que foi lançado, e sei que há duas vagas. Eu quero e mereço estar numa dessas vagas, pelo que fiz ao Nature e pelo que sempre fiz no circuito britânico. Parece-me que o Cochofel não falhará nesse aspecto, já que ele sim me terá contratado pelas capacidades. Não sou um e-wrestler, mas sou um lutador do caralho, capaz de pôr qualquer tipo a dormir com uma direita. Dia 2 é meterem-me no ringue com quem quer seja e este menino – passa a lata para a mão esquerda, e cerra o punho direito – resolve.

Diogo Pinto assente, Lawrence dá um grande golo na lata, que depois esmaga e retira-lhe o embrulho de papel castanho, pondo-a na mesa. De cor vermelha e letras brancas, é Coca Cola.

NL: Agora digam lá que o açúcar deixa os meninos agitados.

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